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A elevada carga tributária e o complexo sistema de tributação vigente hoje no Brasil deriva de uma consolidação que por pouquíssimas vezes passou por profundas reformas. Os intensos conflitos de competência entre os entes federativos, somado a anacrônicos conceitos ainda vigentes na tributação do consumo, diariamente trazem grandes desafios aos contribuintes, que, não raramente, são surpreendidos por fiscalizações e autuações. O presente artigo tem a finalidade, portanto, de trazer uma breve reflexão sobre os desafios da tributação subnacional do consumo no Brasil e a proposta de reforma tributária no contexto da economia digital.

É certo que a Constituição Federal de 1988 estabelece a federação como forma de Estado vigente no Brasil, fixando relativa autonomia entre os entes, dadas as respectivas competências, sobretudo tributárias. Dessa forma, conquanto a República Federativa do Brasil concentre em si a soberania do país, tem-se que municípios, estados e União são entes paritários que, em tese, deveriam compartilhar, entre si e para com os outros, relação de cooperação. Todavia, o aumento do movimento de polarização política, conjugado às diferenças regionais e ao natural anseio de poder por parte dos burocratas, potencializou o processo de esvaziamento de harmonia e coordenação entre os entes, o que gerou diversos conflitos federativos. A Federação há tempos está fragilizada.

No âmbito tributário, diversos são os distúrbios federativos brasileiros, certamente entre os principais figura-se a conhecida guerra fiscal no tocante à tributação subnacional do consumo. Sobretudo no âmbito estadual, para cujos entes a Constituição Federal deixou a cargo o Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestação de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação, na sigla ICMS (CF, artigo 155, II), nota-se uma verdadeira batalha quanto aos incentivos fiscais de ICMS que, conquanto sabidamente ilegais[1], são manejados de forma desorganizada, sem o efetivo ganho econômico que se deseja[2] e às custas de uma desnecessária renúncia fiscal.

Com efeito, tem-se um típico jogo não-cooperativo entre os estados, cujas estratégias são impulsionadas pela existência, ainda que parcial, do critério espacial de tributação na origem, com o resultado prático de uma carga tributária aquém das reais necessidades de financiamento dos entes. Este cenário explica, em parte, a recorrente crise da dívida pública dos estados brasileiros, que não raramente concedem benefícios tributários em troca da presença de investimentos produtivos em suas fronteiras, com o objetivo de, além se fortalecer frente a outros estados da federação, potencialmente viabilizar a geração de renda e emprego.

ENTRE OS MUNICÍPIOS O CENÁRIO NÃO É DIFERENTE.

De igual sorte, ainda que em menor proporção, é o cenário do ISS na esfera municipal (CF, artigo 156, III). Diante do aumento da participação dos serviços na economia brasileira, notadamente com o avanço da dita economia digital, intensificou-se a disputa entre os municípios pela atração de empresas prestadoras de serviço digitais (v.g., licenças de uso de programas de computador, streaming, publicidade online, computação em nuvem, entre outros itens disciplinados na lista anexa da LC nº 116/03). Nessa disputa, a decisão das empresas considera, além da boa oferta de serviços públicos e do potencial consumidor do mercado local, a alíquota do imposto sobre serviços, de sorte que se tem por usual os municípios adotarem alíquotas reduzidas, uma opção de política fiscal que nem sempre garante o retorno social esperado, especialmente na dinâmica da economia digital, caracterizada pela sua escalabilidade sem presença física (scale without mass, i.e., poucos empregados, serviços compartilhados, sem estabelecimento físico).

Com isso, no espaço da tributação subnacional do consumo, especialmente no contexto da economia digital, vemos um verdadeiro conflito que abrange não somente diferentes municípios, mas, inclusive, municípios e estados, pois, corriqueiramente presenciamos disputas pela arrecadação do ICMS ou ISS sobre operações que envolvem a economia digital, tal como aquelas que envolvem softwares, que, em última análise, traz uma lesão maior ao contribuinte, diante da insegurança jurídica até mesmo para qual ente da federação deve-se recolher o tributo o que pode gerar, ao final, uma autuação totalmente descabida e indesejada, resultante tão somente desse intenso conflito.

Aliás, muitos dos conceitos, técnicas e regras aplicadas hoje foram criadas em um contexto social e econômico que, com o passar do tempo, foram completamente reformulados, a partir dos quais novas relações jurídicas nasceram, mas o sistema tributário pouco foi alterado para, de fato, equalizar a tributação. Na própria sigla do ICMS, de competência estadual, como abordado, verifica-se a sua incidência sobre operações que envolvem a prestação de serviços, que não se relaciona com sua principal base tributária, qual seja, a circulação de mercadoria e já revela a anacrônica dualidade entre mercadoria x serviço.

A QUALIFICAÇÃO DAS OPERAÇÕES NA ECONOMIA DIGITAL RESULTA EM UMA AMARGA INSEGURANÇA JURÍDICA AOS CONTRIBUINTES, INCLUSIVE PELO PROFUNDO CONFLITO DE COMPETÊNCIA ISS X ICMS.

Pela matriz constitucional, compete aos Estados instituir impostos sobre, entre outros, operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de comunicação (CF, art. 155, II). Enquanto que, aos municípios, a competência é residual, porquanto a eles competem os impostos sobre serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar (CF, art. 156, III).

A clareza da literalidade da Carta Maior, todavia, é objeto de amplo conflito de competência entre estados e municípios. Especialmente na atual dinâmica da economia digital, as inovações da tecnologia da informação não são acompanhadas pelo desenho legal: ao ampliarem as funcionalidades das empresas, muitas operações digitalizadas passam a ser híbridas, ora com natureza jurídica de serviço, ora com natureza jurídica de comercialização de produto, ou circulação de mercadoria.

Em meio a essa complexa temática de qualificação das atividades econômicas de bens não corpóreos, trava-se o conflito de competência sobre qual a jurisdição competente para instituir o tributo incidente sobre essas operações, isso porque o desenho do ICMS e do ISS foram realizados em um contexto no qual a mercadoria em si necessariamente remetia-se a um bem tangível, palpável, ao passo que a prestação de um serviço revelava, em um primeiro momento, algo intangível, porém, mais que isso, uma prestação de utilidade de qualquer natureza a terceiros, efetuada em caráter oneroso, sob regime de direito privado, e que não configure relação de emprego[3]

Embora hoje existam esses conflitos de competência entre os entes da federação, em verdade, pelo insaciável desejo de uma arrecadação cada vez maior, existem autores que defendam, em grande parte, que esse conflito já esteja resolvido pela Lei Complementar nº 116/03, alterada em 2016 pela LC nº 157/16, que sujeitou ao ISS diversas atividades da economia digital. Motivo pelo qual, a atuação dos estados não passaria de mera cobiça por tributar operações através de um entendimento unilateral de que seu objeto estaria sob a competência estadual de arrecadar, quando, a realidade da legislação mostra que grande parte das operações no contexto da economia digital estejam sob a competência dos municípios.

Não obstante, resta a insegurança jurídica na prática dos contribuintes, dado que o Convênio nº 106/17 do CONFAZ regulamenta a incidência de ICMS nas operações com bens digitais comercializados por meio de transferência de dados. Com efeito, para além da problemática de se distinguir tecnicamente as operações, tem-se no Brasil a sui generis sobreposição de tributos, isto é, a confluência de bases tributárias na cinzenta zona que diferencia o serviço de mercadoria.

A insegurança jurídica da sobreposição de bases tributárias e da efetiva bitributação deságua em uma massiva judicialização da matéria, gerando um enorme custo do contencioso tributário no Brasil. Apenas no STF, tem-se ao menos quatro ADIs em trâmite (5958, 5576, 5659 e 1945) sobre o conflito ICMS x ISS, duas delas, inclusive, sobre o Convênio nº 106/2017 do CONFAZ.

COMPLEXIDADE DA TRIBUTAÇÃO SOBRE O CONSUMO: FRAGMENTAÇÃO DE TRIBUTOS, DIVERSIDADE DE NORMAS E CUMULATIVIDADE.

A tributação subnacional do consumo no Brasil é complexa. Além da fragmentação dos impostos na dualidade de difícil qualificação serviços (municípios) x mercadoria (estados), verifica-se ainda um demasiado número de legislações esparsas, com critérios locais, tanto para conceder isenções, quanto para recortar a base tributária, bem como para definir as alíquotas, notadamente pela ambição de se atrair investimentos produtivos aos custos de benefícios pouco frutíferos para a própria sociedade.

A complexidade do sistema contribui para a sua disfuncionalidade. A difícil interpretação da legislação aumenta a insegurança jurídica por parte dos contribuintes, que ora não sabem com precisão o tributo a ser recolhido, ora não identificam o crédito tributário gerado na operação, revertendo em uma onerosa cumulatividade do tributo, isto é, uma incidência em cadeia, que afeta os preços e a competitividade. Ambos resultam no aumento da litigiosidade, com uma relação absolutamente conflituosa entre contribuinte e fisco, além da pontuada cumulatividade dos impostos que, pelo difícil aproveitamento de créditos, bem como pela inexistência de lei regulamentando a venda de créditos ou a restituição pelos estados, gera sua incidência em cascata[4]

Feitas as reflexões acima, surge a questão: como poderia ser desenhada a reforma da tributação subnacional do consumo no Brasil? Eis o desafio que brevemente se lança na segunda parte deste trabalho.

O primeiro passo, numa reforma tributária subnacional do consumo, seria unificar as atuais bases tributárias dos entes estaduais e municipais em um único imposto, que incidiria tanto sobre serviços quanto sobre bens/mercadorias. A unificação do ICMS com o ISS, ao encerrar a dualidade atualmente prevista nos artigos 155, II e 156, III da CF, superaria o disfuncional debate de qualificação das operações, particularmente complexa no contexto de bens incorpóreos e híbridos da economia digital, e evitaria a sobreposição de bases tributárias, tal como se nota nos dias hoje. Além, claro, de atenuar as constantes renúncias fiscais de cada ente federativo na missão de atrair investimentos produtivos e que podem não reverter em benefícios para a sociedade.

Aliás, vale apontar que a distinção entre mercadoria x serviço por si só se revela anacrônica. O autor Isaias Coelho, no artigo; Um novo ICMS – Princípios para a reforma da tributação no consumo[5] traz as seguintes ponderações acerca dessa dualidade, analisando que;

A distinção entre bem e serviço é ela mesma artificial, pois todo fornecimento de mercadoria inclui em alguma medida uma provisão de serviço, e toda prestação de serviço envolve algum consumo de bens materiais. É impossível, na economia moderna, traçar uma clara fronteira entre mercadoria e serviço.

Consequentemente, para manter a neutralidade econômica e evitar distorções alocativas, o imposto que se desenha seria plurifásico e não-cumulativo, ou seja, incidiria somente sobre o valor agregado de cada elo da cadeia produtiva. Em tese, estaria vedada a possibilidade de recortes na base tributária ou mudanças de alíquotas setoriais, portanto sem a previsão normativa de regimes especiais, benefícios ou isenções. O desenho tributário, ao prezar pela simplicidade e eficiência, baseia-se numa alíquota flat, em valor ótimo a ser estimado por economistas e financistas públicos. Busca-se, ao final, reduzir custos de transação com planejamentos tributários por vezes abusivos, bem como desincentivar políticas de lobby setoriais antidemocráticas e anticompetitivas.

Entretanto, para dar margem para política fiscal regional, pensa-se que a alíquota seria flat (padrão), mas com possibilidade de os entes estaduais definirem majorações ou minorações para casos específicos, dentro de um intervalo com variação mínima pré-estabelecido pelo texto legal. Imagina-se, por exemplo, uma alíquota padrão de 20%, com possibilidade de acréscimo ou decréscimo de dois pontos percentuais, a ser definido processo legislativo democrático, adequando a alíquota em uma equação orçamentária definida pelas seguintes variáveis: onerosidade dos serviços públicos oferecidos ao contribuinte; necessidade de atração de novos investimentos; e solidez fiscal do ente federativo, segundo regime fiscal pela sustentabilidade das finanças públicas, se possível com ajustes aos ciclos econômicos.

Ademais, adota-se o critério da tributação no destino, para restringir a conhecida guerra fiscal entre os estados, motivando-se a obter ganhos benefícios econômicos em detrimento da concessão de benefícios fiscais. Nos ensinamentos de Ricardo Varsano[6];

Adotar o princípio de destino significa eliminar a alíquota interestadual do imposto. Isso feito, todos os produtos destinados ao consumo em determinado estado – sejam eles produzidos no próprio estado, em outro ou no exterior – geram arrecadação exclusivamente para aquele estado; e bens ali produzidos, destinados a outros estados ou ao exterior, não são por ele tributados.

(…).

Essa sistemática não elimina de todo a guerra fiscal, mas impõe fortíssima restrição à eficácia dos incentivos do ICMS. Como todas as saídas de mercadorias destinadas a outros estados ou ao exterior não são tributadas, não servem de base para a concessão de incentivos; e como a Constituição veda aos estados estabelecer diferença tributária entre bens em razão de sua procedência ou destino, não há como privilegiar o consumo de bens produzidos no estado. 5 A única forma possível de conceder benefício fiscal para atrair empreendimentos é a redução do imposto a recolher, cujo valor agora depende do volume de vendas da empresa para dentro do estado. Evidentemente, somente as empresas que pretendam dirigir sua produção primordialmente para esse mercado poderão ser atraídas. Ademais, elimina-se a hipótese — que, como se viu, existe atualmente e não é mera curiosidade teórica, pois efetivamente ocorre — de um estado conceder incentivo, e outro pagar a conta.

Nesse ponto, recorda-se que o Convênio nº 106/2017 do CONFAZ já adota o princípio do destino na tributação de operações digitais pela incidência do ICMS. Apesar de avançar na competência reservada aos municípios, sendo objeto de ADIs no Supremo Tribunal Federal, há um avanço na percepção de adotar o critério de destino na tributação da economia digital, deixando a cargo do estado a arrecadação do tributo incidente, observando o domicílio ou estabelecimento do adquirente.

Por fim, com a fusão do ICMS e ISS, no contexto da criação de um novo tributo com uma base mais ampla, englobando mercadorias e serviços, os Fundos de Participação dos Municípios (FPM) e os Fundos de Participação dos Estados (FPE) ganhariam novos contornos, com repartições de receitas, que não encontrariam problemas, uma vez que o Brasil, ao longo do tempo, desenvolveu sólidas estruturas de repartição de receitas que são imunes aos caprichos dos governantes[7].

Vale apontar que no âmbito subnacional, atualmente os municípios recebem 50% da receita da arrecadação do IPVA e 25% da receita do ICMS, ambos arrecadados pelos Estados em que estão localizados e sobre o qual não encontra-se qualquer queixa sobre o mecanismo vigente de repartição.

CONCLUSÃO

Em conclusão, não são poucos os desafios à frente de uma sólida reforma da tributação subnacional do consumo no Brasil. Qualquer modificação que, a curto prazo, importe em redução da arrecadação tributária de qualquer ente federativo encontra sólidos obstáculos e profunda rejeição dos governantes, que muitas vezes, risco a dizer na maioria, vislumbram tão somente a defesa dos interesses da sua base eleitoral, sem qualquer visão holística acerca dos benefícios que tais alterações poderiam trazer para o país e para o fortalecimento da própria federação, que há tempos está fragilizada.

[1] AFONSO, José Roberto R. et al. Avaliação da estrutura e do desempenho do sistema tributário brasileiro: livro branco da tributação brasileira. 2013. p. 98.

[2] VARSANO,.Ricardo. A guerra fiscal do icms: quem ganha e quem perde. In: Planejamento e Políticas Públicas, nº 15, 2007.

[3] COSTA, Regina Helena, Curso de Direito Tributário, 2 ed. Editora Saraiva. P. 408

[4] AFONSO, op cit.,p . 89.

[5] COELHO, Isaias. Um novo ICMS – Princípios para a reforma da tributação no consumo. P. 35, disponível em http://www.funcex.org.br/publicacoes/rbce/material/rbce/120_IC.pdf

[6] VARSANO, op. cit., p. 16.

[7] COELHO, Isaias. Um novo ICMS – Princípios para a reforma da tributação no consumo. P. 36, disponível em http://www.funcex.org.br/publicacoes/rbce/material/rbce/120_IC.pdf

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Dr. Cezar Camilotti Filho

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