O Supremo Tribunal incluiu em pauta de julgamento a ADI 1945 que trata a respeito da tributação dos softwares (tributação dos bens digitais). Porém, o que esperar desse julgamento, que excluiu as demais ações em trâmite perante a Corte? Como se dá a tributação atualmente?
O desenvolvimento da sociedade, a industrialização, a automação de amplos setores econômicos se consolidaram como realidades inevitáveis e cada vez mais presentes, ganhando espaço nas mais diversas atividades econômicas.
Por mais complexa a forma com que o fenômeno de desenvolvimento tecnológico se apresente, na prática, parece ocorrer de maneira assustadoramente natural. Basta observar que não há um dia sequer que a sociedade não mantenha contato direto com algum sistema operacional, que nos provém facilidades e um aumento significativo de produtividade. Entretanto, ainda que a utilização diária de novas tecnologias seja uma realidade, os obstáculos que permeiam seu entendimento sob uma ótica jurídica e, principalmente, tributária ainda estão presentes e mais, com um futuro incerto e aparentemente distante de serem superados.
O legislador brasileiro, habitualmente desatualizado, às vistas do que não raro se observa em diversas áreas do Direito, não pode acompanhar o acelerado avanço da tecnologia que hoje se apresenta, dentre outros aspectos, na complexa discussão que envolve a tributação dos bens digitais, especificamente controversa figura do software.
Essa ferramenta, que desde os anos 1990 está presente na sociedade e a cada ano que passa entrega novos avanços para facilitar tarefas e propor novas soluções na vida e no mercado, tem indubitavelmente otimizado o tempo e aumentado a produtividade, mas encara uma séria questão de incerteza quanto ao seu funcionamento de fato, sua definição jurídica, sua regulamentação e, principalmente, sua tributação. Em outras palavras, o legislador e o judiciário encontram entraves para estabelecer a efetiva natureza jurídica desse novo elemento socioeconômico e, com reflexos diretos, na sua tributação, bem como o assentamento da discussão que envolve a tributação dos bens digitais.
Software e sua natureza jurídica.
O primeiro movimento para entender o software e sua natureza jurídica aconteceu no longínquo ano de 1998, ocasião em que o Supremo Tribunal Federal, através do Recurso Extraordinário nº 176.626-3, buscou adequar a tributação dos bens digitais a partir da formulação e da separação do software em diferentes tipos, de acordo com as funções e o grau de personalização, com o objetivo de melhor entender, a partir desse paradigma, como cada tributo existente em nosso ordenamento jurídico se encaixaria para cada espécie de software existente, tendo em vista que começava, já nessa época, a discussão, que se prolonga até os dias atuais, quanto à tributação das operações que envolvem software, seja pela incidência do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, de competência estadual, ou do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza – ISSQN, de competência municipal.
A questão central que envolve o debate de tributação dos softwares (tributação dos bens digitais), acompanhado de perto por muitos interessados, é: um software enquadra-se como um produto e, sob essa ótica, seria caracterizado como uma mercadoria, ou um serviço prestado, na medida em que representa uma utilidade prestada a outro indivíduo, ainda que se considere um caráter imaterial?
Fazer essa distinção do software como mercadoria ou serviço é o primeiro passo na jornada para realmente entender como ocorre a tributação das operações que os envolvem. Se de um lado considerar o software como uma mercadoria, então a primeira conclusão é pela aplicação da tributação pelo ICMS, de competência estadual. Por outro lado, se tratarmos o software como uma prestação de serviço entre indivíduos, então a conclusão, mais simplista, é a de que a tributação se dá através da incidência do ISSQN, de competência municipal.
Na ocasião do julgamento do RE nº 176.626-3 os Ministros que formavam o Supremo Tribunal Federal estabeleceram algumas distinções na classificação dos softwares. Assim, naquele momento, pareceu razoável fazer a distinção entre softwares de prateleira (também chamados de off the shelf) e os softwares por encomenda
Na concepção encontrada na ocasião e levando em consideração a sociedade existente na época, o software de prateleira seria aquele em que existe um suporte físico que o transporta, um corpus mechanicum. Em outras palavras, um elemento físico que possibilita a compra por inúmeros usuários de um software idêntico a todos, sem qualquer grau de personalização ou alteração estrutural.
O software por encomenda, por seu turno, consistiria naquele em que um indivíduo, na condição de cliente, passaria as orientações necessárias a uma outra pessoa, seja física ou jurídica, na condição de programador, para o desenvolvimento de um tipo específico de software que atendesse às suas necessidades e carregasse um grau de personalização necessário ao desenvolvimento de seu negócio principal. Assim, nesse caso, a conclusão é a de que, em virtude da personalização solicitada pelo cliente, estaríamos diante de uma prestação de serviço, ao contrário do software de prateleira, que foi classificado como mercadoria, diante da possibilidade de comercialização em larga escala, sem qualquer alteração em sua estrutura e personalização. A partir dessa distinção é que tratou-se da tributação desse bem digital.
O surgimento do Software as a Service.
Entretanto, o avanço da sociedade e da tecnologia fez surgir um tipo de software que desmonta a distinção feita naquele momento pelo Supremo Tribunal Federal. O nascimento do mais comum Software as a Sevice (SaaS), que permite ao usuário o acesso a programas disponíveis na nuvem, em que não há qualquer grau de personalização e, além disso, também não há um corpus mechanicum que transporta esse software, foi responsável por alterar, significativamente, o a discussão que envolve a tributação envolvendo operações com software.
Os mais comuns hoje são o Netflix e o Spotify e em nenhum dos dois casos, como facilmente podemos verificar, são softwares comprados ou encomendados, ao contrário, apenas acessamos sua base de dados o qual situa-se na chamada nuvem e acessível através de um login, de maneira que também não nos apropriamos, na concepção jurídica de transferência de propriedade, de seu conteúdo, mas apenas o acessamos enquanto há uma contraprestação mensal.
O surgimento do Software as a Sevice trouxe novos contornos na discussão que envolvem essas operações, pois, afinal, em um mercado em que o corpus mechanicum e o download vão se tornando cada vez menos presentes nessas operações, teria o fato gerador de incidência do ICMS restado prejudicado e potencialmente inexistente com o passar dos anos?
Muito embora a doutrina e a jurisprudência entendam que para a tributação pela incidência do ICMS é necessário um suporte físico de transporte do software, em 1998 o Ministro Nelson Jobim lançou as primeiras bases para o entendimento a respeito dos softwares propriamente ditos e sua circulação por meio de transferência eletrônica. Frisa-se, transferência eletrônica de propriedade do software (no âmbito dos contratos de cessão de uso, portanto) que prescinde daquele corpo físico que até então distinguia sua tributação.
Supremo Tribunal Federal.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.945/MT, movida no Supremo Tribunal Federal contra a Lei 7.098/1998, originária do Mato Grosso, e à qual até hoje encontra-se pendente de julgamento, sendo recentemente incluída na pauta do Supremo Tribunal Federal para julgamento em 17/04/2020, foi um marco inicial no raciocínio jurídico acerca da evolução tecnológica envolvendo os softwares e que se tornaria real nos anos seguintes.
Nesses autos, à época, o Ministro Nelson Jobim apresentou o seguinte entendimento;
“É que a linguagem matemática que compõe o “software” ou é transmitida tendo como base um disquete ou por meio do sistema de internet. Adquirido, então, o que contém dentro do disquete ou aquilo que me é transmitido via sistema de internet. Qual a diferença entre um bem e outro? Nenhuma. O que eu adquiri foi um sistema de software. A diferença fundamental foi a forma pela qual me foi transferido esse sistema. Houve a transmissão de um bem que é o mesmo que me foi transferido; a diferença é a forma pela qual se transmite: ou se transmite pelo sistema material, sistema de disco rígido ou pelo sistema de Internet. O que está sendo adquirido por mim? É o disco ou exatamente aquilo que se contém no disco; que é aquilo que não é transmitido pelo disco, é transmitido pela internet”[1]
Nesse contexto, infindáveis discussão são travadas entre aqueles que defendem a não tributação do ICMS sobre os softwares e aqueles que defendem a sua incidência, defendendo estes últimos que, com a evolução da nossa sociedade, os conceitos jurídicos, tais como o de mercadoria, também evoluíram para se despender da noção de existência física, passando a abranger o mundo virtual.
Em outras palavras, os defensores da tributação dos softwares pela incidência do ICMS tem como argumento principal que a evolução tecnológica e da própria sociedade fez com que a mercadoria conhecida nas relações mercantis também evoluíssem, para adquirir um categoria de bem imaterial, mas que não deixa de ser mercadoria na acepção jurídica do termo e que é capaz de ser um software. Esse é o entendimento lançado pelo Ministro Nelson Jobim no longínquo ano de 1998.
Entretanto, tais defensores não levam em consideração a questão mais importante imposta dentro desse debate que é: Software as a Service constitui uma prestação de serviço, observando o trabalho humano e a falta de transferência efetiva do software? Ou deve ser visto pelo ordenamento jurídico como um produto, sob a ótica da evolução do conceito de mercadoria, como bem apontado pelo Ministro Nelson Jobim?
Tornando ainda mais confusa a questão, já se apresentam defensores de uma nova Emenda Constitucional com instituição de novas espécies tributárias para incidir sobre esses bens, entendendo que nenhum dos tributos atuais tem suporte fático suficiente para atingi-los.
Entendendo pela não incidência do ICMS sobre operações com software a Confederação Nacional dos Serviços (CNS) ajuizou, no Supremo Tribunal Federal (STF), a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5659 com o objetivo de excluir a incidência do ICMS sobre operações com programas de computador, pois, de acordo com a Confederação, as operações com software já estão arroladas no âmbito de incidência do ISSQN, previsto pela Lei Complementar 116/2003. Assim, de acordo com a entidade, tanto a elaboração de programas de computador quanto seu licenciamento ou cessão de direito de uso são considerados serviços e, como tais, pertencem ao campo da tributação pela incidência do ISSQN, cuja competência para arrecadação é única e exclusiva dos municípios e do Distrito Federal.
No mesmo sentido, além da ADI 1.945, atualmente tramitam perante o Supremo Tribunal Federal as ADI 4.623, ADI 5.659 e o Recurso Extraordinário 688223 e todos envolvem a mesma discussão a respeito da tributação dos softwares (tributação dos bens digitais).
Se considerarmos que os Softwares as a Service não constitui um serviço efetivamente prestado, mas, ao contrário, a disponibilização de um produto em plataforma de nuvem, de forma imaterial, pode ser difícil encontrar um desfecho de que há incidência do ISSQN.
Contudo, por outro lado, focando no trabalho humano por trás dos softwares, em sua programação, que ocorre no plano de fundo da disponibilização ao usuário e a falta de uma transferência propriamente dito do Software as a Service, então a incidência do ISSQN se mostra mais coerente, isso porque, nesse caso, seria necessário reconhecer que não há efetiva circulação de mercadoria, na concepção jurídica de transferência de propriedade, mas mera disponibilização ao usuário, como um serviço posto ao seu dispor, enquanto perdurar a contraprestação mensal atinente àquele serviço, de modo que cessada a contraprestação, cessa também o acesso ao software.
Quanto a isso, tanto na ADI 5.958 quanto a ADI 5659 a Brasscomm e a CNS, respectivamente, pedem a declaração de inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei Complementar 87/1996, conhecida como Lei Kandir e responsável por instituir o ICMS, sustentando que sua aplicação é inadequada para a tributação do software, pois não há efetiva “circulação” do produto nem a transferência da propriedade, pois o comprador da licença não se torna proprietário do programa, mas apenas tem assegurado o direito de utilizá-lo por determinado tempo.
Conclusão.
Em conclusão, fato é que nem a academia, nem nossos tribunais e muito menos nossas leis, têm acompanhado o ritmo de desenvolvimento tecnológico do mercado digital, o que gera cada vez mais insegurança e incerteza frente ao assunto, sempre, porém, por parte do contribuinte nesses tipos de situação, ou seja, as empresas de Softwares.
O tema encontra-se longe de ser definido e hoje somente a ADI 1.945 está inclusa em pauta de julgamento no Supremo Tribunal Federal, o que, aos olhos dos tributaristas mostra-se prejudicial, tendo em vista que a discussão ficará restrita aos pontos levantados nessa Ação Direta de Inconstitucionalidade, excluindo importantíssimas questões levantadas em outras ações sobre o mesmo tema, que atualmente tramitam perante a Corte e ainda encontram-se sem uma solução definitiva, devendo o tema continuar gerando conflitos entre contribuintes e fisco sobre a adequada tributação dos bens digitais e, por consequência, continuará gerando insegurança jurídica nas relações comerciais envolvendo os softwares.
O futuro só tende a aumentar a evolução tecnológica, com novas relações envolvendo softwares e cada vez mais desmaterializadas. A evolução das relações mercantis, principalmente as que envolvem softwares, requer uma evolução na legislação vigente e o enfrentamento consciente e responsável desse tema, trazendo em mente como se darão as relações mercantis no futuro, sob pena de expulsarmos investimentos do país a longo prazo.
[1] Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.945/MT; pg. 252/253