A crise imposta pelo Coronavírus (Covid-19) relevou a fragilidade da economia nacional, ao caminhar das medidas de quarentena aplicadas por todos os estados e municípios da federação, com o consequente fechamento do comércio, interrupção dos serviços e as determinações para que os brasileiros permaneçam em suas residências.
Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF)
Esse quadro de paralisação da atividade econômica nacional, nos três níveis de governo, somada às medidas de intenso isolamento social, tem provocado sérios prejuízos econômicos a diversos setores. As previsões do Banco Central relevam uma queda acentuada no PIB para o ano de 2020[1] e para minorar a eminente recessão, o governo tem anunciado uma série de medidas de incentivo à economia. No Congresso Nacional, parlamentares discutem a instituição do polêmico Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF).
[1] https://www.bcb.gov.br/content/focus/focus/R20200515.pdf
IMPOSTO SOBRE GRANDES FORTUNAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Embora esteja previsto na Constituição Federal, desde sua promulgação, em 1988, o Imposto sobre Grandes Fortunas nunca foi instituído no Brasil. Além disso, cuidou o legislador constituinte de conferir a competência para a União de instituir esse imposto e dada a sua polêmica, por ter como base de cálculo patrimônios considerados, em tese, aquém da realidade da grande maioria dos brasileiros, foi previsto expressamente a Lei Complementar como diploma legislativo pelo qual deve ser tratada sua criação.
Entretanto, essa realidade dormente do Imposto sobre Grandes Fortunas pode mudar em um futuro próximo, isto porque diante dos excessivos gastos para incentivo à economia, bem como manutenção da renda da população menos favorecida no Brasil, com o pagamento do auxílio emergencial, o Congresso busca fontes de compensação para amenizar o impacto que essas despesas terão nas contas públicas. Por isso, o Imposto sobre Grandes Fortunas está em pauta no Congresso Nacional.
PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR 183/2019
É cediço que a atividade econômica nacional sofreu uma queda sem precedentes, arrisco a dizer que é a maior queda econômica da história desse país.
Um levantamento feito pelo Observatório de Política Fiscal da Fundação Getúlio Vargas[1], atualizado em 27/04/2020, revela que desde o início da crise sanitária as medidas decorrentes de programas governamentais, tais como desonerações, ampliação de despesas, diferimentos e antecipação já somam R$ 522 bilhões, o equivalente a 7% do PIB.
Porém, antes mesmo de qualquer evidência do atual cenário que o mundo viria a se encontrar, no final de 2019, foi apresentado o Projeto de Lei Complementar 183/2019, de autoria do Senador Plínio Valério (PSDB/AM) que trata a respeito da instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas, sustentado por outros projetos de Lei Complementar que tratam a respeito do tema, mas já no contexto da pandemia do Covid-19, tais como o Projeto de Lei Complementar nº 50/2020 e Projeto de Lei Complementar nº 38/2020.
Porém, em função do acentuamento da crise sanitária, a partir do primeiro caso relatado em 26/02/2020, o Projeto de Lei Complementar 138/2019 foi colocado em um movimento mais acelerado e atualmente encontra-se em pauta na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal (CAE), na relatoria do Senador Major Olímpio (PSL-SP) e que propõe a incidência do IGF – Imposto Sobre Grandes Fortunas sobre patrimônios líquidos superiores a R$ 22,8 milhões, com alíquotas que variam entre 0,5% e 1,0%,. Parece à margem da expressiva maioria dos brasileiros atualmente, mas não se engane, a potencial instituição do IGF carrega consequências que poderão atingir até as camadas mais baixas da pirâmide social.
Assim, na angústia de angariar receitas, a instituição do IGF pode resultar em problemas de ordem fiscal e econômica e a experiência internacional mostra que o potencial arrecadatório pode não equalizar com os aspectos negativos e a ineficácia que esse tributo carrega.
A EXTRAFISCALIDADE E A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL DEMONSTRAM A INEFICÁCIA DESSE TRIBUTO.
A primeira característica que é importante mencionar é a natureza extrafiscal do IGF, conhecida entre os tributaristas. Porém, de forma que você, caro leitor, possa compreender, a natureza extrafiscal de um tributo significa dizer, em síntese, que sua finalidade principal não é arrecadatória, ou seja, por meio dos tributos extrafiscais objetiva-se o alcance de uma finalidade outra, de caráter social, político ou econômico, mediante a indução de uma alteração no comportamento dos contribuintes.
Ou seja, sua própria natureza, portanto, nos indica que o governo, em tese, não teria a capacidade de arrecadar grandes montas de receitas, tendo em vista, inclusive, as características intrínsecas do IGF, tais como sujeito passivo, base de cálculo, baixas alíquotas e outros aspectos.
A experiência internacional, por sua vez, corrobora esse baixo potencial arrecadatório. Um estudo publicado pela Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), formado por 34 países, tidos como os mais desenvolvidos do mundo, releva que em 2017 somente quatro países dessa organização ainda tinham figuras análogas ao Imposto sobre Grandes Fortunas, denominadas wealth tax[2], sendo eles França, Noruega, Espanha e Suíça.
Além disso, o estudo mostra que em 2016 a arrecadação com o wealth tax correspondia a uma porcentagem muito baixa em relação a toda a carga tributária dos países da OCDE que ainda mantém esse tributo. Na Espanha, o wealth tax corresponde a apenas 0,18% de todo o PIB do país. Na França essa correlação limitava-se a 0,22% de todo o PIB, demonstrando, claramente, o baixo potencial arrecadatório que o IGF carrega, que poderia não suportar os efeitos econômicos pretendidos.
Além disso, o principal problema que fez os demais países a banirem essa figura tributária é justamente um argumento também utilizado aqui no Brasil por aqueles que não defendem sua instituição, qual seja, os custos de eficiência para correta tributação e os altos riscos de grande fuga de capital e investimentos, principalmente em virtude da mobilidade do capital e o acesso, pelos potenciais contribuintes, de paraísos fiscais[3].
Ou seja, os dois primeiros aspectos negativos que podemos mencionar são o alto custo de eficiência para correta apuração da base de cálculo do tributo e, somado a isso, o alto potencial de fuga de investimentos e do próprio capital.
Vale apontar, inclusive, que equivoca-se aquele que acredita que a fuga de capital e investimentos não seria algo a se considerar. Isso porque esse movimento gera impactos diretos na geração de renda e empregos, dado que ao avançar sobre o patrimônio de pessoas físicas e até jurídicas, consequentemente estar-se-ia reduzindo, em primeiro lugar, sua competitividade e, um segundo momento a própria capacidade de investimento, inclusive estrangeiro, desestimulando a atividade econômica, que compreende, em última análise, a produção de emprego e renda das camadas mais baixas e reduzindo a competitividade do Brasil perante outras Nações.
Ademais, os altos custos de eficiência na tributação, conecta-se com um terceiro aspecto negativo, qual seja, a árdua tarefa de estabelecer, em termos reais, objetivos e matemáticos, uma base de cálculo para a incidência desse tributo. Isso se agrava pela necessidade de se monetizar, para fins de acúmulo do patrimônio, objetos que nem sempre são simples de serem convertidos, tais como obras de arte e esculturas, por exemplo e que caso sejam deixadas de fora, certamente veremos um aumento expressivo no mercado desses itens, como práticas de elisão fiscal.
O JUDICIÁRIO CERTAMENTE NÃO ESCAPARIA DE ENFRENTAR QUESTIONAMENTOS.
Em consonância com a árdua tarefa de se estabelecer uma “grande fortuna” como apontado acima, plenamente possível concluir que a partir da instituição do IGF – Imposto Sobre Grandes Fortunas, possivelmente poderemos constatar um aumento expressivo de ações judiciais questionando a obrigação tributária, tal como a própria composição da base de cálculo, por equívocos do legislador, sem perder de vista que hoje o Judiciário já caminha a passos lentos na solução de demandas propostas, que em algumas situações, podem se arrastar por décadas. Não seria surpresa se os questionamentos chegassem ao Supremo Tribunal Federal.
Quanto a isso, oportunamente podemos citar um trecho dos ensinamentos de Hugo de Brito Machado Segundo, que reflete bem o alto potencial de afogamento do Judiciário, a partir da implantação desse tributo, pois segundo o doutrinador: “se houver equívoco por parte do legislador, que inserir no conceito de grande fortuna um patrimônio que assim não deva ser considerado, a questão, de mais a mais, poderá ser submetida ao crivo do Judiciário, como de reto ocorre com os demais impostos”[4].
O PRINCIPAL ARGUMENTO DAQUELES QUE DEFENDEM O IGF É A EQUALIZAÇÃO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA.
Em contraposição aos que não defendem a instituição do IGF, os que dependem alicerçam-se sobre o argumento de que referido tributo equalizaria o princípio da capacidade contributiva, permitindo que aqueles que concentram a maior parte das riquezas contribuam de forma mais significativa no financiamento do Estado, remetendo lastro financeiro, inclusive, para enfrentamento do Coronavírus, a partir de adoção de medidas de combate aos efeitos sociais e econômicos causados por essa crise.
Nos ensinamentos de Regina Helena Costa, “o conceito da capacidade contributiva pode ser definido, numa primeira aproximação, como a aptidão, da pessoa colocada na posição de destinatário legal tributário, para suportar a carga tributária, numa obrigação cujo objeto é o pagamento de imposto, sem o perecimento da riqueza lastreadora da tributação”[5].
Em última análise, os defensores alegam que tributar grandes fortunas é uma medida que traria maior igualdade em nossa sociedade, observando o próprio princípio constitucional da isonomia.
Por essa perspectiva, os que defendem o IGF alegam que o detentor de grandes riquezas carrega deveres e responsabilidades com a sociedade em um panorama geral, devendo atender ao legítimo interesse coletivo. Além disso, alegam que as grandes fortunas, enquanto patrimônio distante da realidade da maioria da população, devem atender a uma função social que vai além da fruição pelo próprio titular, citando o disposto no artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal[6].
Seguindo essa lógica de raciocínio, portanto, a tributação das grandes fortunas no Brasil permitiria que o próprio Estado adotasse medidas de socorro à atividade econômica no país, visando a redução da faixa de desemprego, principalmente no âmbito das classes menos favorecidas. Porém, com a problemática que envolve esse tributo, bem como seus potenciais desdobramentos negativos e , por fim, observando a experiência internacional, demonstrada em momento anterior, substancial considerar que esse suposto suporte às classes menos favorecidas, dada o baixo potencial arrecadatório, no final, poderia terminar em uma falsa esperança.
CONCLUSÃO
Com efeito, observando tanto os aspectos negativos quanto positivos suscitados ao longo desse artigo, acredita-se que os momentos de crise econômica, especialmente a imposta pelo Covid-19 na qual não há perspectiva para acesso rápido a uma vacina, não são momentos adequados para a elevação da carga tributária, principalmente uma potencial nova tributação sobre aqueles que, em última análise, detém os meios de produção e circulação de riquezas, gerando renda e emprego.
Não somente, não podemos ignorar a experiência internacional a respeito dessa tributação, de forma que no Brasil a prudência deveria direcionar os parlamentares do Congresso Nacional a discutir uma revisão da renda no Brasil, com uma maior incidência sobre os ganhos dos mais ricos, com aperfeiçoamento da técnica da progressividade, bem como a criação de novas faixas de alíquotas e extinção das deduções.
Além disso, a eficiência e a competitividade internacional nos mostra que é necessário realizar uma revisão da tributação incidente sobre pessoas jurídicas no Brasil, com a reformulação da tributação sobre a folha de pagamentos, instituição da tributação sobre dividendos, descontado diretamente na fonte, bem como redução da tributação sobre receitas.
Ademais, ao invés de discutir a instituição de um imposto com baixo potencial arrecadatório, seria mais adequado discutir uma reformulação da tributação do consumo, que é uma das maiores mazelas do Brasil, dada a sua expressiva regressividade, que acaba por onerar as maiores e menos favorecidas camadas da sociedade e, sim, viola a capacidade contributiva. A título de exemplo, um estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada[7] mostra que a carga bruta tributária sobre os que ganham até 2 salários mínimos corresponde a 48,8% da renda, enquanto que, mantidas as proporções, sobre aqueles que ganham acima de 30 salários mínimos a carga é de 29% da renda.
Nessa perspectiva, portanto, a tributação de grandes fortunas, em meio à pandemia causada pelo Covid-19 e aos efeitos econômicos diretamente ocasionados por esse momento de intenso estresse revela a expressiva necessidade de se movimentar uma total reformulação do sistema tributário, e não apenas a busca pontual por receitas, através de impostos sem grande potencial arrecadatório.
[1] https://observatorio-politica-fiscal.ibre.fgv.br/posts/observatorio-de-politica-fiscal-atualiza-medidas-de-combate-crise-e-detalha-politicas-de
[2] https://www.oecd-ilibrary.org/sites/9789264290303-4-en/index.html?itemId=/content/component/9789264290303-4-en
[3] “Many factors have been put forward to justify the repeal of net wealth taxes. The main arguments relate to their efficiency costs and the risks of capital flight, in particular in light of increased capital mobility and wealthy taxpayers’ access to tax havens.”
[4] MACHADO Segundo, Hugo de Brito. Manual de Direito Tributário. Editora Atlas. 11ª edição. Pg 287
[5] COSTA, Regina Helena, Curso de Direito Tributário, editora Saraiva, 2ª edição, pg 105
[6] XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
[7] http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/5297/1/Comunicado_n22_Receita.pdf